O amor decodifica o racional

Sem perder a majestade em uma década, Interestelar, o famoso filme do premiado Christopher Nolan continua um sucesso em todo o mundo por seu aparato científico, visual e sonoro. Completando, este ano, o aniversário de dez anos de seu lançamento, o filme voltou às salas de cinema no dia 11 deste mês, por apenas um …

Sem perder a majestade em uma década, Interestelar, o famoso filme do premiado Christopher Nolan continua um sucesso em todo o mundo por seu aparato científico, visual e sonoro. Completando, este ano, o aniversário de dez anos de seu lançamento, o filme voltou às salas de cinema no dia 11 deste mês, por apenas um dia, e lotou de fãs as telonas, novamente.


Não raramente, escutamos alguém dizer o quanto ama esse filme, e por isso, talvez seja indispensável falarmos sobre toda a construção de um roteiro genial que nos agarra pelos artifícios de uma emoção primária: o amor. O longa-metragem teve direito a consultoria do físico Kip Thorne em suas pesquisas, e esbanja todo aquele recurso visual de tirar o fôlego. Mas a verdade é que nós, seres humanos, nos ligamos às histórias quando magnetizados pelos sentimentos.

Portanto, é dissertando monólogos e diálogos sobre amor que os irmãos Nolan tecem o emaranhado de fios que a história sobre viagem no tempo nos enreda.
Famosos, e criticados, por explicar demais os conceitos físicos que abordam em seus filmes, talvez numa tentativa de garantir a máxima identificação do público, os irmãos Nolan andaram em terreno comum ao construir as bases de sua história. Falar sobre amor é um escape comum, mas eficaz, num filme que aborda teorias tão complexas para a maioria das pessoas.


No atual mundo em seu promissor desenvolvimento no campo de IA, cada vez mais capazes tecnologicamente, seja de viajar no tempo-espaço ou da construção de sociedades fora da Terra, uma coisa não muda, a humanidade parte em suas jornadas com a “casa” que habita, em corpo e complexidade, o ser. E para além de sermos produto do que vivemos, somos igualmente produto de milhares de anos de uma espécie que evolui todos os dias, constantemente, através também da linguagem de comunicação e do sentir.


A personagem Murphy, juntamente seu pai, Cooper, protagonizam a história numa espécie de Paradoxo dos Gêmeos, mas nos conectam não pelos feitos científicos, e sim pelo relacionamento. Pai e filha estimulam a identificação dos espectadores, seja através da conexão de ambos ou pelo posterior afastamento no relacionamento. Em primeira mão, Cooper mostra-se um pai focado em criar, ensinar, estimular, compartilhar interesses, ideias, ainda que muitas vezes de maneira pouco ortodoxa.

No decurso da história fica claro que cada um de seus filhos carrega em si um pouco de sua personalidade, seja pela curiosidade científica ou pela praticidade no viver. Entretanto, Cooper faz uma importante observação: que os seres humanos a partir do momento que tornam-se pais passam a estarem vivos com a missão de tornarem-se memórias para os filhos. Logo, ele conclui que não está pronto para reduzir-se apenas a isso, ao amor parental, pois ainda possui chamados a cumprir que são aspirações individuais.


Interestelar coloca repetidamente em cheque o emocional versus racional, seja sutilmente ou em decisões importantes para o enlace da história, detalhe que desagrada a muitos que estão engajados no filme apenas pelo cunho científico. Mas o fato é que se trata de arte, e não de um artigo científico. Para segurar as tramas, os Nolan recorrem ao terreno sentimental, nada mais certeiro para amenizar a tensão e esforço mental que o filme causa. Por exemplo, na história, uma das prerrogativas para realizar a missão Lazarus, na busca de um planeta “parecido” com as nossas condições na Terra, era não ter ligações emocionais, como família e filhos. Isso porque mais uma vez a história nos mostra que sempre estamos entre o processo de escolha entre o racional versus emocional, e que o saldo da escolha pode ser positivo ou negativo.


Outra cena importante é a que Cooper dialoga com a personagem Amélia: a cientista tenta convencer a equipe a visitar um dos planetas da missão Lazarus, que disponibiliza bons dados para a condição de vida humana. Porém, tratava-se do planeta no qual o cientista incumbido de desbravá-lo era também seu ex-namorado. Como tempo e recursos eram primordiais na missão, Cooper julgou que o envolvimento emocional da cientista estaria enviesando a decisão da cientista, portanto, acabou decidindo por não ir ao planeta em questão.

Durante essa discussão Amélia justifica, numa das falas que se tornou uma das mais famosas do cinema, que talvez, mesmo enquanto cientistas, os seres humanos deveriam incluir o amor na equação das decisões, pois ainda não entendemos por completo esse sentimento, e que pode ser um traço das leis da vida que ainda desconhecemos. “Love is the one thing we’re capable of perceiving that transcends dimensions of time and space”. Mais uma vez racional versus emocional.


Nas cenas finais, Cooper encontra um meio de ajudar a humanidade a entender mais sobre os mistérios do universo, ele conecta-se com o amor que sente pela filha e entrega a ela os dados de dentro do buraco negro no qual se encontra. Neste momento, os Nolan fecham o laço da narrativa amor versus ciência, e mostram que para avançarmos, ambos precisam dar o suporte necessário à humanidade, em cooperação.


Perceba aqui o caminho da narrativa, Cooper encontrou dentro de si uma forma de enviar a mensagem, e o amor pela filha foi o meio utilizado para destinar a mensagem. O quarto da filha, que no geral é um lugar importante para uma menina, juntamente com a curiosidade científica que ele mesmo havia estimulado nela, materializou esse meio de passar a mensagem. Ou seja, o quarto, a estante, os livros caindo, eram o meio para a sua mensagem. Os dados, que a humanidade precisava para o desenvolvimento científico, era a mensagem, logo, o amor é a conexão para que isso fosse repassado e entendido de pai para filha.


Há muitas críticas ao fato do roteiro ter optado por falar de amor quando era o momento crucial para entregar ideias científicas, principalmente num filme com consultoria e estudos apurados no campo físico. Entretanto, pincelando o básico e nadando em águas comuns à maioria de nós, os Nolan, assim como Cooper, utilizam o amor para decodificar complexas mensagens e conceitos científicos ao seu público, tal qual Tesseract e realidade de cinco dimensões. Novamente: racional versus emocional do público.


O medo e a ansiedade fazem a humanidade procurar ao máximo a estabilidade social que a natureza do caos nos deixa à mercê, mas o que faz o amor por nós? Talvez a resposta seja que esse sentimento funciona como uma conexão que nos une em busca dessa estabilidade social, no ouvir o outro, no decodificar uma mensagem através de signos que decoramos nas expressões de quem amamos. Talvez esse sentimento funcione como uma dimensão maior que une, enquanto a natureza do caos nos afasta. Tal qual um pai que sofre todos os percalços mas mantém o elo, o fio da promessa de voltar para salvar a sua filha da ideia de abandono, que por consequência traz a chave para o que a humanidade precisa.


O roteiro deixa claro que seremos nós mesmos a nos salvarmos. Numa dobra no tempo, o pai que estava indo para a missão era o mesmo que entregava os dados através dos livros. Somos nós que avançamos não só com a teoria física, mas com nossa capacidade humana de nos unir, de sobreviver, de confiar em promessas, e de cumpri-las. Decodificar mensagens e criar. Todas as leis físicas são inegáveis para o cunho científico da viagem no tempo, da exploração no universo, da possibilidade de vida, do progresso, mas somos nós, em nossa subjetividade, a cola, a conexão, através do emocional, da observação e do racional, tudo junto, que criamos a realidade que une essas leis. Numa eterna briga entre o racional versus o nosso furtivo emocional.

jana maia

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